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Entrevista – Ferreira Gullar



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Entrevista – Ferreira Gullar


15/03/2016
10:11 AM
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Alfredo Henrique
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Atualizado em 15/03/2016 10:11 am

 

Quando Ferreira Gullar começou a escrever, com 15 anos, assinava como Ribamar Ferreira. Batizado como José Ribamar Ferreira, o ainda aprendiz de escritor sentiu na pele o peso de se assinar um texto. Em um jornal de São Luís do Maranhão, onde morava, atribuíram a Gullar a autoria de um poema “medíocre”. Na região, era comum registrar os filhos com o nome Ribamar. “Daí resolvi mudar de nome. Peguei o Ferreira de meu pai e Goulart de minha mãe e mudei a grafia para Gullar para evitar mais cofusões futuras”, disse o agora imortal da Academia Brasileira de Letras.

Gullar está com 85 anos. Não escreve poesia (gênero que o consagrou) há pelo menos seis anos. Disse que o “espanto”, raiz para a criação de poemas, não ocorreu mais durante este período.  No entanto, escreve crônicas, todas as semanas, para o jornal Folha de S. Paulo. O poeta recebeu a reportagem em seu apartamento, em Copacabana (RJ), onde falou sobre arte, literatura, política e a vida.

(Foto: Rodrigo Leme de Almeida)

(Foto: Rodrigo Leme de Almeida)

Gostaria de saber como o senhor se relaciona com o que é conhecido como espiritual. O senhor tem espiritualidade?

Eu sou uma pessoa ligada à realidade concreta. Não acredito em santidades e deuses. Mas acho que a religiosidade é uma coisa importante para as pessoas e que as ajuda a viver. Não é por acaso que a vasta maioria da humanidade tem religião, tá certo? Não tenho, mas respeito a religiosidade das pessoas.

E escrever poemas seria o mais próximo que o senhor faz do que é chamado de etéreo?

Eu não chamo nada de etéreo. Quando eu escrevo poesia, estou em um estado especial. Não tem nada de místico nisso, nada de etéreo. É uma maneira de expressar a realidade.

Pensando na palavra, usada na internet, o senhor acha que ela se tornou algo “líquido”?

Todos tem o direito de se expressar e usar a internet para o que quer, falando certo ou errado. Mas não é por isso que o cara se torna um escritor. O cara nasce escritor, com o talento que pode o tornar escritor.

Da mesma forma para pintor, jogador de futebol e até ladrão. O (deputado federal Paulo) Maluf (PP), você acha que ele roubou por quê? Ele nasceu rico e rouba por vocação.

O senhor é um dos representantes do neoconcretismo (movimento artístico-literário surgido em 1959, após a divulgação de um manifesto). O senhor crê que as vanguardas artísticas usaram todos os limites possíveis de expressão? Acredita que vivemos um período de crise na arte e literatura?

As vanguardas foram fenômenos da época moderna (final século XIX e início XX) enriquecendo a literatura e, especialmente, a poesia e pintura. Foi uma coisa positiva. Hoje existem menos movimentos de vanguarda, que se esgotaram. Mas criaram caminhos outros para estes tipos de arte. As vanguardas estão superadas e, na poesia, nem se fala.

O senhor acabou rompendo com o movimento e enveredando para uma poesia mais engajada politicamente (Gullar morou na antiga União Soviética, Chile e Argentina em condição de exilado político. Era filiado do Partido Comunista no período da Ditadura Militar que se impôs no Brasil entre 1964 a 1985).

A partir de 1962 me engajei politicamente, e por isso, passei a fazer uma poesia engajada também. Fiz isso, pois passei a atuar politicamente num momento em que o Brasil vivia um período de mudanças que resultou na Ditadura Militar, que se opunha a movimentos revolucionários.

Por um tempo fiz poesia participante e fui ao mesmo tempo descobrindo também que era necessário fazer isso, se preocupando com a qualidade poética do que fazia. Não basta fazer poesia bem intencionada, precisa ser boa e depois política. Da mesma forma que o teatro, se for ruim, não adianta ser engajado.

A impressão que tenho é que nesta época as coisas eram mais definidas. Tinham alvos para ser a favor ou contra. Com o fim da polarização do mundo (esquerda e direita) isso mudou.

O socialismo era bem intencionado, mas errado em seu procedimento. (Karl) Marx (1818-1883) tinha uma visão equivocada do que poderia ser uma sociedade justa. Ele eliminou a iniciativa privada, que é o motor da riqueza. Sem a iniciativa individual, não há o desenvolvimento econômico. Todo mundo sabe disso, a força do capitalismo está nisso.

O socialismo, apesar das boas intenções, fracassou por causa disso.

O senhor acredita que ainda podemos chamar de esquerda e direita as propostas de política usadas no Brasil?

Não, isso é da boca para fora. Por exemplo, a Dilma (Rousseff, que atuou na luta armada), ela sempre foi burra mesmo.  Quem se meteu na luta armada, não tinha a visão correta das coisas. Inclusive, a luta armada só serviu para estimular a ditadura a matar mais gente e torturar sob a desculpa de que o governo estava sendo agredido e queriam (guerrilheiros) matar as pessoas.

O que derrotou a ditadura foi a luta pacífica. A formação de uma opinião pública que foi crescendo e colocou a Ditadura contra a parede, que acabou se rendendo, pois, não deu certo.

E depois da Ditadura?

O governo Fernando Henrique (Cardoso) ajeitou a economia. Mas depois, veio o governo Lula e culminou neste desastre que vemos aí. É o populismo, que foi um desastre também na Argentina e Venezuela, pois usa o dinheiro público para dar presente aos pobres, sem resolver os problemas deles.

Não por acaso, vemos o resultado disso. É uma política para manter seu partido no poder, enganando a população mais pobre. O Lula é um cara de pau. É inacreditável. Ele não declarou que não existe nenhuma alma mais pura que a dele?

Depois da operação Lava Jato, não é?

(risos) É inacreditável, o Lula não tem nenhum escrúpulo. Ele disse que foi traído no Mensalão. Vai dizer que o José Dirceu (ex-ministro da Casa Civil), que tinha uma sala ao lado da do Lula, pagava propinas e o Lula não sabia?

É o único tipo de traição que beneficia o “traído” (risos).

E qual é o caminho político a ser seguido após o fim do período petista no poder?

Não tem saída, é o capitalismo. Ele não foi inventado por ninguém, é um processo social injusto que precisa ser corrigido. Acabar com ele não dá.

O que falta (no Brasil) é uma liderança que compreenda a situação do país e tenha coragem de dizer a verdade.

Como o senhor se define politicamente hoje?

Está claro no que escrevo. Defendo a democracia e digo que o capitalismo é um regime de exploração que deve ser corrigido.  Não acredito em sociedade totalmente igual, pois, as pessoas não são iguais. A natureza não cria uma pessoa igual a outra, é mentira.

A natureza é injusta. Ela cria o cara que mal consegue respirar e cria um Pelé. Cria um gênio como Albert Einstein (1879-1955) e um idiota que não consegue aprender a ler.

Querer fazer uma sociedade inteiramente igual, como diz o Marx, é uma bobagem. É injusto, porque você nivela por baixo.

O que não pode acontecer é um cara ganhar milhões e outro não conseguir comprar comida.

É o que sempre digo em minha coluna (da Folha de S. Paulo). O capitalismo é um regime de exploração e o socialismo é uma bobagem.

Saindo um pouco da política. Há uns dez anos, o senhor afirmou não gostar de relembrar do passado, pois te machuca. Continua a pensar assim?

Sim. Não tem por que pensar no passado, ele já passou. É tanto sofrimento, tantos amigos que perdi, é tanta coisa que me dói muito, prefiro não ficar pensando. Adianta alguma coisa ficar pensando no passado? Só se pensa no passado para corrigir os erros.

Eu quero tudo, menos sofrimento.

Aproveitando o gancho: o que mais te dá medo hoje em dia?

O fanatismo do Estado Islâmico e outros setores equivocados, que usam uma crueldade sem sentido. Eles usam crianças para realizar crimes.

É uma coisa sem sentido cara. Daí dizem que Deus, que Alá é grande e pá, matam as pessoas. Isso realmente é inacreditável. Tenho dificuldade em entender isso. Isso não é religião, é um equívoco.

Jamais comparando. Mas já que estamos falando de fanatismo, aqui no Brasil há uma corrente que usa da religião para embasar seus preconceitos.

No Brasil não dá certo. O fanatismo daqui fica (na mão) de meia dúzia de cretinos, a maioria não está nessa não (risos).

Em contrapartida a isso, o que te deixa feliz vendo o mundo atualmente?

Eu acho que o desenvolvimento tecnológico é importante. E, apesar de todas as dificuldades, o ser humano avança, tendo mais consciência do caminho a seguir.

No entanto, as questões econômicas são complicadas, em um mundo globalizado. Mas sou otimista com relação ao caminho que a civilização está tomando.

Fale sobre algum defeito do senhor.

Não fico pensando nisso. Procuro fazer o melhor possível, dentro de minhas possibilidades.  Que defeito eu tenho?

Acho que poderia ser mais simpático. Conversar mais com as pessoas.

Em seu cotidiano, o senhor é mais retraído, é isso?

Junto com amigos e familiares, sou mais espontâneo. Se estou no meio de pessoas que não conheço muito bem, sou mais retraído, prefiro me calar.

Mas isso, dependendo do ponto de vista, pode ser uma virtude e não um defeito, não é?

Quem tem que me apontar meus defeitos são os outros. Na medida em que fico sabendo, trato logo de corrigir.  Gente perfeita não existe. Fora o Lula, ninguém é perfeito (risos).

Gullar, deve ter ouvido muito esta pergunta, mas vou fazer assim mesmo. Caso não tenho sido escritor, pensou em alguma outra coisa para a vida?

Não. Não pensei nem mesmo em ser escritor. Não planejo minha vida. Quando garoto, percebi que tinha um jeito para escrever. Mas não imaginava em seguir carreira, ser escritor. Até hoje minha vida não é planejada.  Não fico arrumando sarna para me coçar.

Complementando a pergunta sobre medo, o que mais me assusta é doença e sentir dor física. Isso é uma coisa que tenho horror.

Meu sonho é morrer dormindo igual minha falecida esposa (com voz embargada), a Thereza (Aragão, morta em 1994. Com ela, o poeta teve três filhos). Antes de almoçar, tomou seu banho, vestiu o roupão, deitou na cama para descansar e não acordou mais.

O senhor quer partir do mesmo jeito?

Seria genial. Porque costumo dizer, o problema não é de quem morre, mas de quem fica. O cara morre e pra ele acabou tudo, não tem problema.

O senhor não tem medo da morte?

Não, absolutamente. Quando trabalhava na Funarte (Gullar foi presidente da Fundação Nacional de Artes entre 1992 e 1995), estava muito cansado e me encostei na mesa para descansar. Minha secretária entrou e me chamou. Daí imaginei: e se eu não tivesse acordado? Compreende?

Seria um problema para a minha secretária e para quem ficou: minha mulher, meus filhos. O cara morreu, acabou. Acabaram todos os problemas.

A morte é boa.

A morte é um tema recorrente na poesia. Como sua visão poética encara a morte e a vida?

Eu não penso nisso. Eu amo a vida e tanto quando possível, quero dar alegria às pessoas. Essa é uma das funções da poesia, dar alegria às pessoas.

Esse negócio de falar que o poeta sofre (para escrever) é mentira. Quando o cara está escrevendo, está transformando o sofrimento em alegria. Pode existir a dificuldade em escrever, mas isso é um prazer. Pois, o que ele (poeta) está fazendo é uma coisa que ele ama fazer. Aquilo ali é uma alegria para o outro que vai ler.

A poesia e a arte são uma alquimia que transformam o sofrimento em felicidade. O cara que escreve para sofrer é maluco. Quem quer escrever para provocar sofrimento nos outros?

A arte acrescenta ao mundo uma nova experiência sobre temas.

Ela oferece experiências estéticas…

Por exemplo, o (pintor neerlandês Vicent) Van Gogh (1853-1890) fez um quadro sobre uma noite estrelada. Ele acrescenta aos milhões de céus estrelados mais uma possibilidade, que só existe na tela em que ele pintou.

Da mesma forma que o (Carlos) Drummond (de Andrade, 1902-1987), em um poema determinado, acrescenta à vida humana uma beleza, uma alegria, que foi ele quem inventou.

Essa é a função da arte. A arte não retrata a vida, a arte inventa a vida, enriquece a realidade.

O senhor escreve motivado por isso?

Escrevo para manifestar algo que descobri. Isso resulta em enriquecer a vida do outro.        

Acredita que todas as pessoas nascem com sensibilidade para passar pelas experiências proporcionadas pelas artes?

Umas são mais e outras menos sensíveis, mas acho que de algum modo todas as pessoas sentem prazer em algum tipo de arte, não é isso? Nem todo mundo adora música de (Johann Sebastian) Bach (1685-1750), mas gosta do samba, do frevo, de outras coisas. E outros ainda gostam tanto de uma como da outra coisa.

Mas uma pessoa insensível a todo e qualquer tipo de arte, acho que não existe.  É a impressão que tenho.

E os movimentos artísticos atuais, como os avalia?

Há uma suposta vanguarda aí, que se chama de arte contemporânea, que é uma piada, não existe. O cara colocar um urubu na gaiola e chamar isso de arte… isso é bobagem, isso não é vanguarda. É um equívoco.

Mas existem coisas bem feitas dentro da arte contemporânea. Há coisas criativas como a sala vermelha do Cildo Meireles, é criativa, bonita, poética.

Na literatura contemporânea, está lendo alguma coisa?

Eu recebo e leio trabalhos, mas não vou mencionar nomes. Prefiro não citar, pois vou deixar de falar de um monte de gente.  

Existem bons poetas sim, gente jovem que está fazendo coisa criativa.

E a poesia para o senhor, como poeta?

Não escrevo mais poesia.

Definitivamente?

Eu não me espanto há cinco ou seis anos já. Não vou me espantar mais, eu sinto isso. Mas não decidi nada, essas coisas, ninguém decide: nem que vai, nem que não vai escrever poesia. Isso é uma coisa que não depende do cara. Pode ser que amanhã eu escreva.    

Não escrevo poesia, mas escrevo crônicas todas as semanas, faço colagens. Agora faço colagens em relevo (pega uma obra e a mostra), isso aqui é invenção minha. Ela mostra o avesso do papel, a revelação do avesso.

Faço uma colagem tridimensional, que resultou do acaso que revelou o avesso do papel.

Daí um amigo sugeriu de expor a falei que não iria expor porra nenhuma.

Por fim, a exposição foi feita em São Paulo e tudo foi vendido. Alguém quer comprar urubu? (risos).

E sua imortalidade, está garantida?

Eu não penso nisso. Ficaria muito feliz que as pessoas continuassem a ler as coisas que eu escrevi. Agora, imortalidade não existe. Nem as pessoas que estão na Academia (Brasileira de Letras) se acham imortais.

O clima da Academia é muito diferente do que as pessoas pensam. Ficamos a vontade, tem senso de humor. É um ambiente muito bom, muito cordial e fiquei muito contente de entrar na Academia e conviver com o pessoal lá.

Qual foi a pergunta que nunca te fizeram em entrevista e que sempre o senhor quis responder?

Nunca formulei esta questão para mim. O que eu quero falar, eu falo. Não fico condicionado às perguntas (de entrevistadores), às vezes ultrapasso a resposta, como estou fazendo agora.  Disse uma porção de coisas que você não me perguntou.

E como senhor cuida da saúde?

Meu médico pegou o resultado de alguns exames e verificou que não tenho colesterol, pressão alta, essas coisas. Me perguntou o que eu comia, daí respondi que nada (risos).

Come igual um passarinho?

Como pouquinho (o que explica a silhueta esbelta do poeta).

Qual a maior fonte de prazer atual em sua vida?

É estar com minha companheira, a Cláudia (Ahimsa), quando saímos para passear – já que moramos em apartamentos separados.  A gente se encontra toda semana.

E também estar com minha filha, meus netos e meus amigos.   

E fico triste lembrando dos que se foram. O mau de viver muito é isso.

Meu outro prazer é minha gatinha.

Qual o nome dela?

Gatinha. Antes dela era o Gatinho (para o qual Gullar dedicou uma série de poemas, que viraram livro).

(O poeta interrompe a entrevista, afirmando estar exausto. Ele autografa alguns livros e se despede).

Entrevista em vídeo:

Confira trechos em vídeo da entrevista concedida pelo poeta Ferreira Gullar, em um ele fala sobre arte e no outro sobre política.

Arte

https://www.youtube.com/watch?v=LLR1PhtkJbo

Política

https://www.youtube.com/watch?v=HVnVH24x9eU



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